Vida comunitária: um laboratório de análises químicas!

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Recentemente, participei de um Aspirinter da regional CRB Minas, cuja dimensão abordada foi a comunitária, assessorada pelos Irmãos Vitor e Joilson (Maristas) que brilhantemente conduziram o tema com leveza e profundidade. Trouxeram como motivação as personagens do filme ‘Divertidamente’ para representar as emoções vividas pelos membros de uma comunidade de consagrados. Foi brilhante a ideia de resgatar desde o lúdico a realidade de nossas comunidades religiosas. Surgiram inéditas partilhas desde a ótica dos jovens e dos formadores que sem dúvida serão aprofundadas nas casas formativas.

Esta é apenas uma introdução ao tema que me proponho e, antes de chegar nele, faço uma pequena consideração histórica sobre a VRC que surgiu como um apelo a seguir Cristo através de um estilo de vida bem peculiar. Este pequeno resumo pode ser encontrado na Revista Convergência de 2001, n. 339 de autoria do Ir. Nery nas páginas 25-42.

Do século I ao IV, o seguimento de Jesus Cristo foi caracterizado por “uma ascese martirial de vida que tem duas perspectivas, uma é a imitação de Jesus e a outra é a solidariedade aos irmãos e irmãs em prisão. O ideal da virgindade começa a crescer entre as jovens, como uma prova martirial de seguimento de Jesus no estilo matrimonial de “sponsae Christi” e, também, como forma de esperar a vinda gloriosa do Senhor”. Do século IV ao XII, o seguimento radical de Cristo se dá pelo monaquismo: cenobitismo, ascetismo pessoal, oração em comum, trabalho intenso, apreço pela cultura, predominância dos leigos, seriedade na formação, sentido patriarcal da autoridade e matriarcal para as femininas. Do século XIII ao XV, vemos o florescer do seguimento de Jesus nas Ordens Mendicantes que surgem num contexto delicado da história civil e decadência de um modelo de Igreja totalmente feudal. Frente a esse modelo de riqueza e poder, os leigos criam um novo conceito de seguimento radical de Cristo: a mendicância desde uma séria opção pela pobreza, o estudo e a pregação das Escrituras e com isto a inovação da vida consagrada. Características dessa fase: a fraternidade, a penitência, a austeridade, a conversão evangélica, formação de comunidades nas periferias. Do século XVI em diante, o seguimento de Cristo é marcado pela Diaconia com o surgimento das Congregações e novas formas de VRC com ênfase na caridade, na missão para o apostolado. A Igreja vive uma crise generalizada, decorrência em partes da corrupção na sua hierarquia, surge a reforma protestante, a ‘Devotio Moderna’ com sua forte espiritualidade de vida interior e dedicação às obras de misericórdia. Características deste período: centralidade das Congregações em Roma contrapondo-se à reforma, predominância clerical, ênfase aguerrido na pregação e no apostolado contra as heresias, radicalidade nas obras de caridade, melhor organização na estrutura interna e externa das congregações, maior número de comunidades femininas.

Em sua essência, a VRC é comunitária, como atestam os inúmeros documentos da Igreja e sua constituição desde o início. O fundamento é Cristo que chama para junto de si os que quis (Mc 3,13). O Mestre formou sua comunidade apostólica para difundir sua mensagem de salvação e atrair ao coração de Deus os filhos amados. Na primeira comunidade de discípulos, ornada com a beleza das santas mulheres e de Maria, temos um fecundo testemunho de entrega e acolhida pastoral, de vidas ofertadas e consagradas ao reino. No seguimento de Cristo está todo o conteúdo da vida em comum. A vocação é na realidade um chamado a conviver com Jesus e compartilhar a vida numa missão de amor e fraternidade. O caminho não se faz sozinho, mas se completa no outro que partilha suas alegrias, dores e esperanças. Nessa jornada somos catequizados e aprendemos a separar nossos joios e plantar o trigo da vida.

A VRC é comunidade de salvação, pois “estabelecer a paz e a comunhão com ele e uma fraterna sociedade entre homens é o sentido da vinda de Cristo ao mundo” (AG 3). Em comunidade somos convidados a colocar o amor no centro e beber o cálice de Cristo numa saudável liberdade onde exercemos a autoridade batismal conscientes de que servir é criar empatia, inclusão e compromisso.

Vida comunitária não é uniformidade, mas um espaço para potenciar a humanidade integrada, equilibrada a partir do mistério pascal, de uma justa imagem positiva que transcende as aparências físicas e toca no íntimo do seguimento de Cristo.

Voltando ao início do tema, no momento de partilha das ressonâncias em grupo, eu fiz essa afirmação aos formadores: que a vida comunitária é um laboratório de análises químicas! Não sei se alguém já definiu a comunidade religiosa nestes termos, mas foi uma iluminação que me veio. Refletindo sobre as emoções: medo, tristeza, inveja, nostalgia, nojo, ansiedade, vergonha, tédio, raiva, próprios dos seres humanos vivendo ou não em comunidade, devemos expandir nosso conhecimento interno e nos posicionarmos verdadeiramente sobre quem somos, o que sentimos e como lidamos com esse universo para interagir na comunidade.

Ainda sofremos com aquela ideia de que na VRC se deve enterrar o autoconhecimento e negar nossa humanidade, como se os homens e mulheres escolhidos fossem amorfos. Somos humanos! Não se nega a natureza e a história em nome de um chamado. Jesus nos convida a sermos plenamente humanos na relação interpessoal. Isto é vida em abundância da qual Ele mesmo, o bom pastor veio esclarecer.

A comunidade religiosa é ‘espaço de vida nas vidas’ em movimento, nos encontros, nas conquistas e na cura das feridas. Estamos permeados de sentimentos e emoções que traduzem nossa forma de ser e agir. Por isso, é essencial buscar meios para equilibrar e restaurar a qualidade de vida conformada a Cristo. Comunidades humanizadas são aquelas que não fogem de sua identidade, mas se abrem à inovação e ao discernimento permanente.

Quando afirmo que é um laboratório, quero dizer que é lugar de uma experiência concreta de humanidade. Nos dicionários encontramos vários significados para a palavra laboratório: “atividade que envolve observação, experimentação ou produção num campo de estudo ou a prática de determinada arte ou habilidade ou estudo; oficina; lugar de grandes operações ou transformações; uma sala ou espaço físico devidamente equipado com instrumentos próprios para a realização de experimentos e pesquisas científicas”. É sem dúvida um lugar técnico, que numa análise superficial evoca frieza, vazio de relações, distanciamento, objetividade. Mas também, espaço de atenção plena, de cuidado, segurança, busca de respostas concretas e responsabilidade social evitando-se amadorismo.

Neste sentido, se o corpo humano em partes é movido por compostos químicos que cientificamente o movimentam na sua fisiologia, é também dirigido no nível da parte psicológica mais profunda. Somos um todo que interage e se conecta desde um interior em ebulição. Conhecer as emoções que nos formam torna a convivência mais significativa evitando os desperdícios e as potencialidades de cada um no ministério ao qual está colaborando.

A comunidade, como laboratório, é um lugar de experiência que reforça o ideal de seguimento de Cristo, diferente de um lugar de experimentos onde consagrados brincam com seu tempo e acabam fazendo deste espaço sagrado um covil de gladiadores que coabitam no mesmo local por segurança sem vínculos, sem paixão, sem olhar fito no Senhor e no evangelho. Quando a tabela periódica comunitária está desequilibrada e as questões pessoais se misturam sem diálogo ou discernimento, facilmente as explosões preenchem o recinto e os conflitos de base se tornam guerras de insegurança que destroem o carisma. Infelizmente é uma realidade vivida em muitas comunidades por não saberem lidar com suas emoções nos mínimos detalhes ignorando uma força capaz de matar relações. Facilmente tudo se perde quando fugimos de nossa humanidade e retrocedemos na missão de amar e fazer o bem.

Os acidentes comunitários provocados pelo impulso na resolução de conflitos sem um justo senso crítico são como a mistura de substâncias químicas sem conhecimento de causa. Cada membro de uma comunidade traz dentro de si um laboratório com sua tabela periódica. Quanto mais conhecida sua realidade e seus desafios, melhor será o processo de aprendizado sem causar dor e sofrimento no outro.

É muito importante ter o projeto de vida bem claro e sempre visitar o coração para ver se o que está dentro faz frutificar ou corrói sutilmente os afetos transformando as relações em um campo de extermínio. Necessitamos comunidades compassivas que experimentam a alegria da vocação e sejam corresponsáveis com a vocação comum.

A sobrevivência de nossos carismas depende de como alimentamos o amor fraterno e continuamente nos enamoramos de Cristo, deixando o individualismo doentio para assumir a partilha de dons que torna nossa comunidade um lugar sagrado de almas dedicadas a cuidar compassivamente do bem comum.

Que as comunidades de VRC celebrem festivamente sua identidade unindo-se ao banquete das Bodas de Caná para “fazer sempre o que Ele disser” (Jo 2,5) perpetuando a memória do Ressuscitado que gentilmente senta conosco e parte o pão e vinho para a salvação do mundo. A exemplo de Maria e de nossos Fundadores que acolheram a palavra e acreditaram na vida comunitária, os consagrados e consagradas proclamem o Magnificat da missão e saiam para tornar Jesus conhecido, amado e servido por todos.

Pe. Nilton Cesar Boni cmf
Missionário Filho do Imaculado Coração de Maria – Claretiano

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