Conversão cosmológica: tarefa da teologia

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A trigésima quinta edição do Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), com o tema Amazônia e o futuro da humanidade, recolocou em foco as reflexões ecológicas. Pelo que consta, a intenção do Congresso – enquanto espaço de reflexão e proposições – foi, em primeiro lugar, à luz do pensamento decolonial, ensejar a discussão sobre a situação dos povos originários, especialmente a valorização de suas culturas e tradições, e o necessário reconhecimento de seus direitos fundamentais diante das graves e recorrentes ameaças a que estão sistematicamente submetidos.   Em segundo lugar, o Congresso quis enfatizar o tema da ameaça climática. E, finalmente, destacar a relevância da “ecologia integral” e o que, especificamente, a ecoteologia, compreende como “o necessário cuidado de nossa casa comum”.[1]

A ecologia tem ganhado espaço nas reflexões teológicas contemporâneas. O fato, contudo, não deixa de gerar incômodos, incompreensões e críticas. Há quem acuse a teologia de desvio de foco e de objeto, ou de perda de identidade. De fato, a ecologia e os problemas ambientais, devem preocupar a teologia? Que ela fale de Deus e que possa falar do homem, aceita-se ou se pode aceitar. Mas ela pode dizer uma palavra pertinente sobre a relação do homem com a natureza? Certamente, sim.

Obviamente, a palavra da teologia diante dessas realidades é sempre uma palavra propositiva. Aliás, conforme diz o teólogo belga Adolphe Gesché (1928-2003), “talvez seja esta uma das funções da teologia: propor suas próprias palavras, não certamente como dogmas e conceitos imediatamente operatórios, mas como conceitos transversais, ‘nômades’, circulando no interior do discurso dos homens para fazer pensar”.[2]

A proposição dessa palavra, contudo, deve acompanhar o lúcido reconhecimento de que, embora existam outras razões e raízes não-religiosas, a teologia também tem parte na crise ecológica que enfrentamos. A má compreensão do relato do Gênesis, especialmente do “enchei a Terra e submetei-a” (Gn 1,28), está na origem dessa civilização que legitimou a dominação da Terra pelo homem. E, por ter parte de responsabilidade na origem da crise, a teologia pode e deve, em espírito de conversão, dizer uma palavra que oriente e colabore para a superação dessa mesma crise.

Uma indispensável contribuição, nesse sentido, é a conversão da cosmologia. De acordo com o teólogo Leonardo Boff, por trás da crise sistêmica que atravessa o planeta e do debate sobre o futuro da Terra, estão em conflito duas cosmologiasa da dominação e a do cuidado.[3] E, ambas, remetem-se a princípios teológicos. A primeira entende a Terra, seus recursos e demais seres (inclusive humanos) como objeto de consumo: devem ser submetidos, dominados e usados. A segunda, ao contrário, reconhece o valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana; ao invés de dominar a natureza coloca o homem no seio dela em profunda sintonia e sinergia.

A força dessa cosmologia do cuidado reside no fato de “estar mais de acordo com as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se optarmos por ela, criaremos a oportunidade de uma civilização planetária na qual a vida da Terra e do ser humano, o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganharão centralidade. Será a grande virada salvadora que urgentemente precisamos.”[4]

Adolphe Gesché diz que “para que um projeto humano – como a salvaguarda e a integridade da criação – tenha todas as chances e obtenha sucesso, não basta que seja conduzido por uma vontade política, ecológica, econômica ou mesmo moral. É preciso que, além disso, esteja fundado sobre o plano filosófico e metafísico e, para nós, teológico. É preciso que haja conquista conceitual”[5] . Nas palavras de Leonardo Boff, é preciso “ir para além do aspecto econômico-financeiro da crise e descermos aos fundamentos.”[6]

Qual seria, então, o conceito que precisamos conquistar para fundamentar uma cosmologia diferente da atual? Aqui pode entrar em cena a oferta da teologia: a salvaguarda teologal da Terra. E como elaborar e oferecer isso? Qual seria o conceito teológico que pode salvaguardar a Terra?

Antes de responder a essas perguntas, é importante esclarecer que a oferta a ser apresentada circunscreve-se na tradição teológica cristã. As outras experiências religiosas e teológicas possuem outros argumentos. Mas naquilo que é próprio do cristianismo parece-nos importante destacar, como referência teologal, o seguinte: a Terra é morada do LogosÉ claro que a Terra é nossa morada, nosso oikos. Como reza o Salmo 115, “o Céu pertence ao Senhor, mas a Terra, ele a deu para os homens” (Sl 115, 16). Contudo, ela não é somente isso, e aqui está o cerne de nossa reflexão: esta Terra também é morada do Logos divino. E o é, conforme lembra Gesché, por quatro motivos.

Primeiro, a Terra é morada do Logos a título de eternidade: desde antes da fundação do mundo (cf. Sl 77,12), a Sabedoria de Deus (seu Logos) já estava “interessada” neste mundo dos homens. Estava junto de Deus “como mestre-de-obras, era seu encanto todos os dias, todo o tempo brincando em sua presença: brincava na superfície da Terra, encontrava suas delícias entre os homens” (Pr 8, 30-31). Em segundo lugar, a Terra é morada do Logos a título de criação: a profissão de fé “por quem todas as coisas foram feitas” marca com o seu selo toda a teologia cristã. A criação foi feita sob o modelo do Logos. “Ele é a imagem do Deus invisível o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1, 15-16). Em terceiro lugar, a Terra é morada do Logos a título de encarnação: “o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1, 14). E, finalmente, a Terra é morada do Verbo a título de parusia: Ele virá em sua glória. Virá para esta Terra que é sua. “É nesta Terra, e não em outro lugar, que o Pai lhe entregará todas as coisas. É nesta Terra, lugar de suas primeiras núpcias com a humanidade, que se prepara a mesa das núpcias eternas (cf. Lc 13, 29; 22, 30). A Terra é, até o fim, lugar de Deus, morada onde o seu Logos age.”[7] E além de morada do verbo a Terra, e toda criação, é “carícia de Deus” (LS, 84). E como tal deve ser reconhecida, tratada e proposta pela teologia.

Na tarefa da conversão cosmológica é indispensável à teologia e aos teólogos redescobrirem e valorizar a reverência ao Mistério que se esconde na natureza. Como disse o Papa Francisco na Laudato’Si (2015): “o universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre. O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São Boaventura: ‘A contemplação é tanto mais elevada quanto mais o homem sente em si mesmo o efeito da graça divina ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras criaturas’ ” (LS 233).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frei Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA

Religioso presbítero da Ordem de Santo Agostinho, Fr. Jeferson Felipe da Cruz exerce missão pastoral no Vale do Jequitinhonha. Possui graduação em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (2008), Graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores (2013), Especialização em Filosofia Patrística e Escolástica pela Faculdade de São Bento (2012) e Mestrado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2018).

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