A IGREJA EM CRISE (?): entre o significado e a relevância

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Os últimos censos nacionais atestam um expressivo declínio no número de católicos no Brasil. Entre outros fatores, o declínio numérico parece indicar que a Igreja está (ou continua) em crise em nosso país. O que está acontecendo? Por que a Igreja e o catolicismo estão nesse estado? Estamos diante de uma crise de significado ou é a relevância da igreja que está comprometida? Quais seriam as possíveis causas dessa crise instalada e crescente?

Antes de tudo, sendo realistas (sem eufemismos ou conformismos, é claro), precisamos convir que a crise é parte constituinte da Igreja. Em outras palavras: a crise da e na Igreja não é privilégio do século XXI. Desde os primórdios foi assim. O que justificou a celebração do Concílio de Jerusalém, em meados do século I, conforme a narrativa dos Atos dos Apóstolos (At 15), senão a crise causada pelo choque entre os costumes judaicos e a abertura da Igreja aos não judeus? Ou, ainda, o que motivou os chamados Concílios Cristológicos dos primeiros séculos, senão a crise causada pelo contato da mensagem cristã com as culturas e categorias conceituais advindas do helenismo? O que está por trás de Trento, senão uma crise? E o Vaticano II é fruto do que, senão de uma crise de identidade sofrida pela Igreja na modernidade? Esses e outros episódios mostram que a crise não é privilégio contemporâneo e que, como outrora, se for bem vivida pode ser uma oportunidade de conversão. Esse princípio básico, tão válido para os indivíduos, aplica-se às instituições com o mesmo valor.

É claro que para avaliar essa circunstância delicada, embora ela seja velha conhecida, a redução destas linhas não permite um estudo aprofundado das suas possíveis causas e razões. A impossibilidade de esgotar o tema, contudo, não nos impede de apresentar algumas considerações que podem ampliar o campo de visão e a compreensão de alguns sintomas e queixas.

Diante das crises, especialmente aquelas que antecederam e exigiram a realização dos eventos citados anteriormente, para garantir o cumprimento de sua missão no mundo, a saber: o testemunho de Cristo e o anúncio do Evangelho, conforme o mandamento do Senhor (cf. At 1, 8; Lc 16, 15), a Igreja precisou buscar saídas. No contexto da modernidade, por exemplo, viu-se obrigada a indagar ampla e profundamente as condições modernas da fé e da prática religiosa; e, visando favorecer a vitalidade cristã e católica, aplicou-se ao próprio aggiornamento. No continente latino-americano, o aggiornamento pressupôs e exigiu uma decidida opção preferencial pelos pobres e a consequente imersão nas periferias.

Curiosamente, em nossos dias (marcados pelas polarizações), dentre os muitos diagnósticos encontrados para a atual crise da Igreja, ganham relevo as críticas ao aggiornamento e à imersão nas causas sociais e populares. Muitos defendem que a “salvação” está no retorno à tradição (esquecendo-se que o aggiornamento nada mais é que o “retorno às fontes” e que a opção pelos pobres é a mais genuína evangelicae traditionis).

Será mesmo que a crise atual da Igreja é resultado do seu esforço por atualização ou da sua opção pelos pobres e pelas periferias? Será que a salvação está na volta para as sacristias ou nas pregações espiritualistas? Será que a saída para a Igreja é não ser “Igreja em saída”? É voltar-se para si mesma, fechar-se ao mundo e à realidade e seus clamores?

No século XX, com o advento da nova teologia política, representada sobretudo pelos teólogos alemães Johann Baptist Metz e Jürgen Moltmann, foram cunhadas duas categorias importantes para entender a relação entre a religião, os indivíduos e a sociedade: significado e relevância. De acordo com a aplicação dessas categorias, a religião tem duas funções no mundo: oferecer significado-sentido para os indivíduos e, ao mesmo tempo, mostrar-se relevante, contribuindo em aspectos fundamentais da construção do coletivo.

Utilizando essas categorias, poderíamos dizer que, para alguns, a salvação da Igreja está na concentração e na dedicação ao “significado”; afinal, o homem e a mulher contemporâneos têm sede de transcendência e sentido. Esta deveria ser sua exclusiva tarefa: dar significado à existência por meio de ritos, símbolos, hierarquia, gramática própria, etc. (para quem pensa assim, as igrejas cheias e os eventos de massa – inclusive as multidões da madrugada – são sinais da “salvação” da Igreja); para outros, a salvação está na manutenção ou busca da relevância: garantir seu “lugar de fala” e sua inserção na busca de transformação da realidade.

Ora, a Igreja é, antes de tudo, communitas fidelium, a comunidade dos que creem em Jesus. A fé em Jesus está na raiz da experiência cristã, fundamenta-a e a alimenta. Essa fé dá significado à existência de quem crê, como testemunha o apóstolo Paulo: “minha vida atual, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20). E, como tal, essa fé define (ou deveria definir) as opções, o comportamento, a mentalidade, os gestos, enfim, a dinâmica da vida do crente. E isso não só no âmbito da intimidade (fé implícita), mas também, e sobretudo, no âmbito das relações sociais (fé explícita). Como disse o Papa Francisco: “o querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparecem a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade (EG, n. 177)”.

A fé implícita precisa ser explícita. Como disse o apóstolo Tiago: “se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém disser ‘ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’ e não lhe der o necessário, que proveito haverá nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, está completamente morta (Tg 2, 14-17)”. Contudo, as obras da fé explícita não podem ser resumidas à gramática ou ao simples mencionar o nome do Senhor. A confissão da fé se dá pela palavra, é verdade, mas muito mais pela conduta. Como disse o próprio Jesus: “nem todo que me diz ‘Senhor! Senhor!’ entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que faz a vontade de meu Pai (Mt 7, 21)”.

A vontade do Pai, convenhamos, confunde-se com os valores mais profundos que a humanidade precisa redescobrir e assumir: liberdade, partilha, justiça, fraternidade… Conforme o oráculo de Isaías: “grita a plenos pulmões, não te contenhas, levanta tua voz como trombeta e faze ver ao meu povo a sua transgressão. […] É a mim que eles buscam todos os dias, mostram interesse em conhecer os meus caminhos como se fosse uma nação que pratica a justiça. […] E perguntam: ‘por que jejuamos e tu não o vês?’ […] a razão está em que, no dia do vosso jejum, correis atrás dos vossos negócios e explorais os vossos trabalhadores; a razão está em que jejuais para entregar-vos a contendas e rixas, para ferirdes com punho perverso. […] Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo jugo? Não consiste em repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que está nu e em não te esconderes daquele que é tua carne? (Is 58, 1-7)”.

Quando a Igreja menciona esses valores (liberdade, partilha, justiça, fraternidade, etc.), está mencionando o Evangelho. Quando a Igreja os pratica, está presentificando o reinado de Deus. Ainda que falte a referência verbal ao nome ou às categorias teológicas tradicionais, quando a Igreja propaga os valores do Evangelho, ela cumpre sua missão (testemunhar a Cristo e anunciar seu Evangelho), conserva-se relevante para o coletivo e, ao mesmo tempo, pode oferecer um projeto de sentido muito mais consistente para os indivíduos. Relevância e significado-sentido não são categorias contrastantes. Ao contrário, retroalimentam-se.

Conforme disse o teólogo Juan Antonio Estrada: “à pergunta pelo sentido responde a oferta de salvação das religiões. Estas querem mostrar como viver a partir de seus fundadores. A partir da perspectiva cristã, Jesus é o novo homem, que vem mostrar como realizar o plano de Deus para a humanidade e o caminho da salvação. Esta não se refere apenas ao além morte, mas se atualiza numa vida com sentido, numa forma de existência que vale a pena. A cristologia é o referente para a antropologia, já que Jesus mostra como e em que consiste a humanização do homem. E a novidade é que realizar a própria humanidade é a melhor forma de aproximar-se de Deus, de divinizar-se. Jesus mostra como ser pessoa em função de certos valores, os do reino de Deus, que são também divinos porque atualizam o que Deus quer. O elemento radical do projeto de Jesus está em sua humanidade como a forma histórica da filiação divina. Sua compreensão de Deus transtorna as concepções religiosas acerca do divino e do humano. Os preceitos religiosos subordinam-se a valores humanos a defender, que são também os valores de Deus. (Da salvação a um projeto de sentido, Vozes, 2018, p. 6)”.

A saída da crise (para a Igreja e, quiçá, para a humanidade) não está nem no humanismo fechado ao sobrenatural, nem também no espiritualismo desencarnadoTalvez, a saída esteja naquele equilíbrio sutil (e difícil de ser alcançado): um humanismo movido pela transcendência e uma transcendência sempre grávida de humanismo.

 

Fonte: https://agostinianos.org.br/artigo/a-igreja-em-crise-entre-o-significado-e-a-relevancia/

 

 

 

 

 

 

 

 

Frei Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA

 

Religioso presbítero da Ordem de Santo Agostinho, Fr. Jeferson Felipe da Cruz exerce missão pastoral no Vale do Jequitinhonha. Possui graduação em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (2008), Graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores (2013), Especialização em Filosofia Patrística e Escolástica pela Faculdade de São Bento (2012) e Mestrado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2018).

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